Capítulo 1 Quatro anos após a prisão
Em Jexburgh, no auge do inverno, o frio era cortante e fazia parecer que todos estavam trancados dentro de um porão de gelo.
Dentro da oficina da prisão feminina, Raylee Somers, vestindo seu uniforme de detenta, costurava sapatos.
Suas mãos estavam inchadas e vermelhas, cobertas por frieiras e bolhas, causando-lhe uma dor insuportável.
Nesse momento, uma guarda se aproximou e chamou: “Raylee Somers, a família Goodridge pagou sua fiança. Você está livre para sair agora.”
A menção ao nome Goodridge fez um medo instintivo tomar conta de Raylee, impedindo-a, por alguns segundos, de compreender o que a guarda havia dito.
Quatro anos atrás, seu destino mudou drasticamente.
No seu aniversário de dezoito anos, justamente no dia em que atingiu a maioridade, ela passou de herdeira rica a ladra.
Sua mãe biológica, uma governanta, havia secretamente trocado sua identidade com a da verdadeira filha da família Goodridge.
Quando a governanta a confrontou pedindo dinheiro, toda a verdade veio à tona.
A partir daquele momento, a vida de Raylee desabou. Ela observava a família Goodridge se abraçando entre lágrimas e palavras afetuosas, enquanto permanecia parada, deslocada, sem saber onde realmente pertencia.
Naquele instante, foi forçada a encarar uma verdade cruel: os pais que conhecera por dezoito anos já não eram seus.
Depois de um longo silêncio, Alaric Goodridge finalmente percebeu Raylee parada de forma desconfortável ao lado. Ele refletiu por um momento antes de reunir coragem para dizer:
“Ray, mesmo com o retorno de Waverly, você sempre será a filha mais velha da família Goodridge. A partir de hoje, ela será sua irmã mais nova.”
Harriet Carraway, ao perceber que havia deixado Raylee de lado, também tentou reconfortá-la:
“Ray, continuarei te amando e cuidando de você como se fosse minha própria filha.”
A jovem acreditou em cada uma daquelas palavras.
Mas a humilhação veio rápido demais.
A família Goodridge foi convidada para o baile de aniversário de Tiffany Lorimer, filha da prestigiosa família Lorimer.
Durante o evento, todos viram Waverly roubar o colar precioso de Tiffany.
Também viram a melhor amiga de Waverly acusá-la de roubo na frente de todos.
Tiffany ficou furiosa, chegou a ameaçar chamar a polícia e mandá-la para a cadeia.
E todos ficaram em silêncio, decidindo, sem dizer uma palavra, que Raylee levaria a culpa por Waverly.
Mesmo sendo completamente inocente, Raylee implorou, resistiu, mas foi como se o mundo inteiro tivesse se virado contra ela.
No fim, ela foi presa.
Naquele momento, ela percebeu que não tinha mais pais.
“Olha só, indo embora para uma boa vida, hein? Vocês acham que ela vai lembrar da gente quando sair?”, zombou uma das valentonas da prisão, com desdém na voz.
Num reflexo, Raylee se ajoelhou no chão.
“Desculpa, desculpa, eu errei. Por favor, não me bate”, suplicou.
A guarda franziu a testa, impaciente.
“Raylee Somers, ande logo!”
Foi aí que Raylee finalmente entendeu: ela estava saindo. A valentona que a atormentava não seria mais uma ameaça.
Sob o olhar atento da mulher que a maltratava, ela abaixou a cabeça e se afastou lentamente.
Após finalizar os trâmites de sua libertação, ela vestiu suas roupas casuais, finas e gastas, e foi escoltada até os portões da prisão.
De longe, avistou uma figura alta e esguia encostada num carro de luxo.
O homem vestia uma camisa preta de cetim brilhante, com alguns botões desabotoados. Seus olhos negros e penetrantes exalavam autoridade e poder.
Raylee o encarou sem sentir qualquer alegria por rever alguém querido. Ao contrário, um medo profundo a envolveu. Sua perna machucada começou a doer novamente.
Ele era Samuel Goodridge, o homem que ela considerava ser o seu irmão mais velho durante dezoito anos.
Para agradar a senhora Lorimer, ele havia feito questão de que a valentona da prisão “cuidasse” dela pessoalmente.
Ele foi a origem de todo o sofrimento que ela enfrentou na prisão.
O vento cortava.
Mas mais frio que o inverno era o que Raylee sentia por dentro.
Quatro anos haviam se passado.
Ela acreditava que já estava anestesiada, mas ainda assim não conseguiu conter a tristeza.
Lutou para não chorar.
Enquanto reprimia tudo o que sentia, Samuel já caminhava em sua direção.
Ela estava com medo, apavorada até, mas não ousava fugir. Sabia que qualquer tentativa de se esquivar poderia resultar em algo pior. Mesmo fora da prisão, aquela reação condicionada já fazia parte dela.
“Faz tempo. Me desculpa.” Ela se curvou, com respeito, com sua voz carregando um misto de medo e frieza.
Samuel ficou surpreso.
Faziam quatro anos que não se viam.
Para sua surpresa, a antiga princesinha arrogante, que se achava o centro do mundo, começou a conversa com um pedido de desculpas.
Ele tinha se preparado para uma explosão de raiva, para que ela exigisse justiça como fizera no passado. Mas, em vez disso, ela apenas abaixou os ombros, sem a altivez de antes.
Parecia assustada, exatamente como ele desejava há quatro anos.
E ela chegou lá. Com uma sinceridade desconcertante.
Naquele instante, ele foi incapaz de encarar aquilo.
Uma tristeza repentina brotou do fundo do seu coração.
Ele se sentia como um leão derrotado, exilado num mundo solitário, onde só havia escuridão e frio.
Samuel respirou fundo e disse com calma: “A vovó sentiu muito sua falta. Ela já está bem velhinha e doente. A senhora Lorimer assinou uma carta de perdão pra garantir sua libertação antecipada.”
Logo após terminar a frase, Samuel percebeu que não estava sendo caloroso o suficiente. Deu um passo à frente, tentando abraçar Raylee, mas ela se esquivou.
Ele parou por um instante, pensativo. Com um tom ainda mais suave, disse: “Isso tudo já passou. Ainda sou seu irmão. Vem comigo.”
O coração de Raylee deu um salto.
Ele ainda é meu irmão?
Ela havia esperado por essas palavras durante tanto tempo.
Quando foi presa, passou cada segundo acreditando que Samuel viria salvá-la. Custava a crer que o irmão que a amou por dezoito anos fosse tão cruel.
Mas quanto maior a esperança, maior a queda.
De expectativa, passou à decepção. E depois, ao desespero total. A realidade escancarou a verdade.
Ela não tinha mais família.
A estrada onde Samuel viria resgatá-la havia sido apagada do seu coração.
Então, ao ouvir o homem que se dizia seu irmão dizer que estava ali para levá-la embora, ela se sentiu vazia.
Ela deu um passo atrás e se curvou novamente, sua voz fria: “Agradeço à senhora Lorimer pela carta de perdão. E também à vovó Goodridge por lembrar de uma ex-presidiária como eu.”
Ela falou com todo o respeito possível.
O calor familiar já não existia mais.
Samuel, incomodado com tamanha frieza, franziu o cenho e disse com impaciência: “Mesmo tendo passado quatro anos na prisão, o papai disse que você continua sendo uma Goodridge. Não precisa ficar se remoendo por causa disso.”
Para ele, a irmãzinha que criou com tanto carinho não era uma criminosa.
Mas, para Raylee, suas palavras soaram como um soco.
Quatro anos de prisão haviam deixado marcas.
Todos os dias ela vestia seu uniforme humilhante e fazia trabalhos forçados.
Passou fome, ficou doente e, ao menor erro, era punida pelos guardas.
A valentona inventava novos métodos de tortura.
Seus dias na cadeia foram um pesadelo, piores que a morte.
Ser filha da família Goodridge só a fez sofrer ainda mais.
Ao perceber a tristeza no rosto de Raylee, Samuel deu um leve tapinha em seu ombro, suavizando o tom: “Vamos visitar a vovó no hospital. Ela está esperando.”
Em seguida, ela virou-se e caminhou até o carro.
Ao olhar para trás, viu Raylee andando a passos firmes, sempre mantendo certa distância dele.
O que foi agora? Sou um monstro?
Ela precisa mesmo se manter tão longe assim de mim?
Samuel se pegou lembrando das vezes em que Raylee se agarrava nele com alegria, o que só fez aumentar o vazio dentro dele.
Ele apressou o passo até o carro.
Quatro anos de sofrimento ensinaram Raylee a não provocar a família Goodridge. Ela sabia que não aguentaria as consequências.
Então, mesmo com a dor intensa na perna machucada, não se permitiu perder tempo.
Na pressa, tropeçou e caiu, mas logo se levantou e continuou.
Quando chegou ao carro, Samuel já estava lá dentro.
O motorista da família, Gavin Whitlock, era o mesmo de antes. Ele saiu do carro, a cumprimentou: “Olá, Sra. Goodridge”, e abriu a porta traseira.
Mas Raylee abriu a porta da frente e entrou.
O motorista ficou um pouco surpreso.
Samuel saiu do carro, escancarou a porta do passageiro e a puxou com força.
Sem o menor cuidado, a jogou no chão como se fosse lixo.
“Se te incomodo tanto assim, então me risca da sua vida de vez!”
Raylee mordeu o lábio, com o tornozelo torcido doendo mais uma vez.
Ignorando a dor dela, Samuel seguiu com a bronca: “Achei que você tivesse amadurecido, mas continua tão imatura quanto antes. Acha mesmo que sentar no banco da frente muda alguma coisa? Só prova que você perdeu totalmente a noção! Como é que tem coragem de me desafiar? Pelo jeito, ainda não entendeu qual é o seu lugar! Esquece o carro. Vai a pé pra casa! E presta atenção: quando for visitar a vovó no hospital, mude essa cara de velório. Não quero que ela fique preocupada!”
Depois disso, ordenou ao motorista: “Dirija.”
Gavin ficou incomodado ao vê-la no chão, mas não ousou desobedecer e foi embora.
Raylee assistiu ao carro se afastar sem demonstrar reação.
O abandono e a traição de quatro anos atrás já haviam lhe ensinado tudo.
Não era ela que não sabia seu lugar, era Samuel que tinha esquecido que a obrigaram a retornar ao seu lugar de origem e, mesmo assim, a culpavam por não aceitá-lo.
Com os punhos cerrados, ela se levantou com dificuldade, sabendo que precisava alcançar o carro ou poderia irritar ainda mais a família Goodridge.
E talvez não aguentasse uma nova punição.
Caminhou alguns metros, até que o carro voltou e parou na sua frente.
O vidro desceu, e os olhos furiosos de Samuel a encararam.
“Entra logo!”