Capítulo 7 A prisão fria
Enrico deu-lhe as costas e foi verificar se as janelas ainda estavam trancadas. Lívia viu as costas largas e não pôde deixar de pensar no quanto o corpo daquele homem era bem tonificado, rapidamente, balançou a cabeça tentando abandonar aqueles pensamentos inoportunos.
— Você não conhece as palavras mágicas.
— Que merda é essa?
— Já disse alguma vez 'Por favor' e 'obrigada'?
— Pare de me perturbar e vai lá ver se tem algo para comer, estou com fome!
Grunhido de raiva, Lívia saiu daquele lugar. Enrico estava abusando de sua paciência e passando de todos os limites, mas ela não podia se dar ao luxo de contrariá-lo.
Ela pegou dois pacotes de biscoitos e jogou para Enrico assim que ele entrou em sua sala.
— Só tem isso?
— Ah, desculpa! Não sabia que vinha para o jantar, — lançou um sorriso debochado.
O homem barbudo segurou Lívia no chão. Ergueu o rosto para o líder que verificava a situação do chefe.
— Senhor Bianchi, acorde! — Segurou-lhe o punho e verificou a pulsação.
De repente, as pálpebras se abriram. Enrico despertou e, abruptamente, agarrou o braço do homem torcendo-o. Levantou-se e num único movimento passou o braço em torno do pescoço do homem pressionando com força.
— Sou eu, chefe! — O homem gaguejou em desespero.
— Por que vieram tão tarde? — Enrico inquiriu rudemente ao aliviar a pressão que fazia contra o pescoço do homem — Eu quase morri nessa merda e vocês nem mesmo apareceram para me ajudar!
Enrico torcia o braço do homem contra as costas por alguns segundos antes de diminuir a dor para que ele pudesse responder.
— Não foi tão fácil encontrar o seu paradeiro, senhor Bianchi.
— Vocês são um bando de incompetentes! — Esbravejou cheio de ódio. — Inúteis.
— Perdão, senhor Bianchi!
— Você é um péssimo líder, eu devia te matar agora! — Enrico tirou a glock da cintura do homem e apontou para a testa.
— A minha filha nasceu ontem, chefe! — disse, com a voz chorosa. — Nem vi a minha bebê porque estava caçando o paradeiro do senhor.
A respiração de Enrico estava alterada e os olhos completamente vidrados. Afastando a pistola, cerrou os punhos e acertou um murro seguido do outro, o sangue escorria pela face alva. Ele encostou o homem esguio contra a parede, marcas arroxeadas apareciam em ambas as faces.
— Viemos o mais rápido que pudemos, chefe! — O subordinado virou a cabeça levemente e cuspiu no chão, a saliva estava misturada ao sangue.
— Chegaram atrasados demais! Eu já estaria morto se dependesse da ajuda de vocês.
Por um momento, Enrico encarou o jovem gângster que continha Lívia no chão, as pupilas da médica estavam cheias de lágrimas.
Para Lívia, agora tudo fazia sentido, aquela cena deu a ela as respostas que precisa para entender quem, realmente, era aquele bandido impiedoso.
— Tire ela do chão e leve-a para o carro! — Ele mandou entre os dentes trincados. — Não faça nada com a doutora até que eu ordene. — Enrico apertou o pescoço do homem — Capiche?
— Sim, chefe!
— Na próxima vez que se atrasar, eu mesmo vou arrancar o seu couro! — esbravejou.
Um dos gângsteres levantou Lívia do chão levando-a para fora da clínica, precisavam dar um fora dali o mais rápido possível antes que a polícia aparecesse.
Em certo momento, tudo à sua volta começou a girar. Enrico não sabia se era efeito da medicação que a doutora Ricci lhe aplicou poucas horas antes ou os sintomas da concussão, teve uma noite tão turbulenta que mal teve tempo para descansar e se recuperar de seus ferimentos. Os olhos escureceram, segurou nas costas da cama tentando permanecer em pé. As pernas bambearam e o sangue fugiu de seu rosto, tentou resistir, mas perdeu os sentidos e foi ao chão.
Com os olhos vendados, a doutora Ricci estava sentada no banco de trás de seu próprio carro enquanto ouvia os capangas de Enrico a vasculhar sua bolsa, celular, tablet e a carteira de documentos.
— Bella ragazza! — O gângster mais jovem sorriu e mandou beijinhos para a mulher vendada no banco traseiro.
— Stronzo! — O mais velho deu um tapa na nuca do comparsa. — O chefe já está furioso e você ainda quer arrumar mais problemas! — Chamou a atenção do jovem inexperiente.
Sentada entre aqueles dois homens, Lívia ouvia as vozes alteradas especulando sobre o tipo de castigo que o tio de Enrico imporia sobre cada um deles.
Os pensamentos estavam acelerados e, enquanto escutava aqueles homens, o medo dominava a sua mente. Ouvia os gângsteres chamarem o chefão de louco enquanto lembravam de tudo o que o tio de Enrico fez contra os seus rivais e, até mesmo, contra os seus próprios comparsas que falavam em suas missões.
Depois de esperar por cinco minutos, o motorista deu a partida no automóvel. Lívia permanecia em silêncio sentindo os cílios roçarem na venda em seus olhos, estava apreensiva, pois já há algum tempo não ouvia a voz de Enrico.
— Depressa! — Um deles falou.
— Onde está o senhor, Bianchi? — O motorista indagou.
— O chefe está no outro carro!
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Lívia foi retirada bruscamente do veículo, não tinha noção de onde estava, apenas seguia os passos do homem que puxou-a com pressa. Ela tropeçou em alguma coisa dura.
— Cuidado com os degraus!
Colocando um pé atrás do outro, continuou dando passos inseguros ao descer a escada. Quando pararam de andar, o homem retirou à venda dos olhos de Lívia e lançou-a em uma cela, como se ela fosse a criminosa
— Por que estão me prendendo? — Olhou para os dois homens sem entender o que estava acontecendo ali. — Sou uma cidadã de bem.
— Nós também somos, doutora Ricci! — A voz máscula estava carregada de sarcasmos
Os dois homens riram por alguns segundos.
— Sou médica e atendo aos meus pacientes naquela clínica.
— Entra logo! — O homem barbudo empurrou-a de volta para trás das grades e, em seguida, trancou a porta com um cadeado.
— Onde está o Enrico? — perguntou, nervosa. — Salvei a vida dele.
— Ora, nós temos algo em comum! — Ergueu os braços, sendo sarcástico.
Lívia encarou o homem com marcas roxas no rosto e o lábio superior inchado. Aquele era o homem que Enrico quase matou.
— Nós sempre salvamos o chefe. — disse um dos rapazes — o senhor Bianchi não costuma ser grato, ele acha que nós não fazemos mais do que a nossa obrigação.
— Por favor! — implorou. — Tenho um cachorro que não come nada desde ontem.
— Tenho uma esposa que deu à luz e eu nem estava ao lado dela quando minha filha nasceu. Olha o tamanho da gratidão do senhor Enrico Bianchi! — o homem mostrou a face inchada — A doutora devia ter ficado feliz por ele não ter machucado a senhorita.
Com tristeza nos olhos, Lívia segurou as grades. Só queria ter a chance de conversar com Enrico. Estava disposta a jurar que não entraria em contato com a polícia se ele a deixasse partir.
As horas passavam e, gradualmente, a cela ficava mais clara. Lívia estava sentada no banco reto e gelado quando levantou o rosto e olhou para a janela quadrada.
A luz do sol invadia a prisão fria e inóspita. Lívia lembrou dos anos em que morou na França e da oportunidade que recebeu para trabalhar no Brasil.
Se conseguisse sair dali, ela estava decidida a fugir para bem longe de Enrico. Pretendia arrumar tudo e partir para um país onde não pudesse ser encontrada.
Ao olhar para o outro lado das grades, viu uma mulher robusta que trazia uma bandeja com o café da manhã. A senhora de meia-idade tinha linhas na testa vincada, ela abriu a cela e deixou a refeição ao lado de Lívia. Não disse uma única palavra.
— Hei, senhora! — Lívia se pôs de pé e segurou as grades. — Posso falar com Enrico?
— Coma! — Foi a única palavra de ordem que a voz crepitante disse.
Sem titubear, a mulher deu-lhe as costas e seguiu pelo corredor mal-iluminado.
Por mais que a cela fria e solitária lhe causasse arrepios, não era a primeira vez que mantinham presa. Aquela cela trazia recordações de tempos distantes, imagens de um velho guarda-roupas onde ela era posta de castigo, no orfanato católico onde cresceu, reacendeu na sua mente.
Por ser muito focada nos estudos, ela era considerada uma nerd e tinha dificuldades de fazer amizades. Por isso, acabava sempre sendo vítima das brincadeiras de mal gosto das outras meninas. Enfurecida, Lívia revidava com socos e puxões de cabelos e, por isso, era obrigada a passar o dia trancada no armário do castigo.
Lívia comeu um pedaço da torrada e tomou o suco. Não tinha notícias de Enrico e nem mesmo sabia o que ele pretendia fazer com ela.
— Stronzo! — murmurou. — Farabutto! — Ela xingava Enrico enquanto comia.
O coração estava tomado pela raiva. Intimamente ela desejou que os ferimentos dele piorassem ao ponto de levá-lo à morte.
Naquele momento, nem mesmo o juramento de Hipócrates poderia incentivá-la a salvar aquele mafioso frio e sanguinário outra vez.
Ainda de cueca, ele sentou na cama enquanto comia o biscoito. Franziu a testa ao sentir a dor que, desta vez, estava um pouco mais forte.
— Pegue aqueles remédios que você me deu mais cedo.
— Argh! — Lívia fechou a cara.
— Hei, pegue os mesmos medicamentos! Não posso tomar ibuprofeno.
Revoltada, a doutora Ricci saiu pisando duro pelo corredor, ela foi até o consultório onde mexeu no armário e sorriu ao pegar o frasco de ibuprofeno. E se ele tiver alergia? Lívia deu um sorriso. Talvez aquele pequeno frasco ajudasse a dar uma lição naquele cara.
— O que é isso? — Olhou para a seringa na mão da médica. — Onde está o comprimido?
— Algumas balas acertaram o armário de remédios no tiroteio. — Ela omitiu sua verdadeira intenção — Você se joga na frente de uma bala e agora, está com medo de uma injeção? — indagou em tom brincalhão.
— Aplica logo essa merda! — Exibiu o músculo do braço.
— Esse remédio é aplicado por via intramuscular, na região do glúteo.
— Ah, não! Você não tocará no meu traseiro.
— Então fica aí curtindo a sua dor.
Enrico alisou o curativo no braço, o sangue não estava tão quente quanto na hora em que lutou contra aqueles homens. Naquele instante, a dor estava insuportável.
— Anda logo!
Ele levantou-se e ficou de costas para a doutora.
— Abaixe mais um pouco! — Lívia pediu, deu um peteleco leve na seringa.
— Quer que eu fique nu?
— Não será necessário, já vi coisas demais por hoje!
Lívia puxou o tecido da cueca preta e espetou a agulha. Aplicou o líquido lenta e profundamente no quadrante superior externo do glúteo de Enrico.
O homem engoliu em seco tentando conter a cara feia. Apesar de ser um homem corajoso, sempre detestou injeções desde criança, mas não queria que a médica risse de sua fraqueza.
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Uma hora mais tarde, apesar da dor ter sido aliviada pela medicação, Enrico começava a sentir um pequeno desconforto seguido de coceira e vermelhidão que se espalhou por todo o corpo. O homem virou-se na cama, coçou o pescoço e em seguida a barriga. Aquela coceira incomodava, Ele sentou em silêncio enquanto coçava os braços.
Do outro lado da sala, Lívia notou o desconforto de seu paciente. Intimamente, ela se vangloriava por ver a sua vingança funcionar.
— Qual remédio você aplicou?
— Analgésico. — Lívia titubeou.
Voltando os olhos para o livro, a médica continuou com a sua leitura enquanto Enrico se deitou novamente. Lentamente, ele relaxou e, mesmo com comichão, adormeceu.
Algumas horas depois, alguém bateu na porta do Hospital novamente. Lívia ficou assustada, ela mexeu-se na cadeira e fitou o mafioso adormecido.
Lívia ainda estava lendo quando percebeu o som de batidas na porta da clínica, assustada, se remexeu na cadeira mantendo os ouvidos atentos ao que acontecia do lado de fora. Ela olhou para Enrico que dormia profundamente, cogitava acordá-lo, talvez fossem outros homens querendo atacá-lo. Levantou-se bem devagar, as batidas do seu coração estavam mais fortes.
Lívia estava prestes a acordar o homem deitado à sua frente, mas recuou quando um pensamento cruzou a sua mente.
“Se quisessem nos matar, já teriam atirado”, ela refletiu, talvez aquela fosse a sua oportunidade de pedir e ajudar a escapar dali.
Em passos lentos, a médica deixou o quarto onde Enrico estava deitado e seguiu pelo corredor até a entrada da clínica, mas antes que pudesse chegar à porta, homens de terno preto entraram no local. Antes mesmo que pudesse imaginar uma maneira de fugir, Lívia já havia sido dominada com truculência por um dos homens que a imobilizou contra ao chão.
— Não fiz nada! — Ela se defendeu em voz baixa, imaginou que aqueles homens eram detetives e que estavam ali para prender o mafioso. — Sou médica, trabalho aqui. — O rosto estava pressionado contra o piso de madeira frio.
— Fica quieta! — Pôs a mão na boca da médica.
Sem emitir som, Lívia reparou nas roupas dos quatro homens, eles não eram quem ela imaginava.
— Olha, o chefe está ferido! — Um deles apontou para o homem estirado sobre a cama.