Capítulo 3 A médica
Do outro lado da cidade, Lívia deixou escapar um sorriso cansado após atender os últimos pacientes em sua clínica. Ela era uma jovem médica tão autoconfiante que, antes mesmo de concluir sua residência no hospital Saint-Mary, na França, ela já havia planejado ajudar o seu melhor amigo no atendimento aos pacientes e na administração de um Hospital na Itália. Quando retornou à Florença, a doutora Ricci se dedicou ao trabalho com afinco.
Aquele havia sido um dia bastante agitado na emergência do hospital. Lívia verificou a agenda, havia mais dez pacientes já agendados para o dia seguinte. Despediu-se dos funcionários enquanto apagava as luzes da clínica. Estava trancando a porta quando ouviu uma voz gritar o seu nome do outro lado da rua.
— Lívia!
— Que susto! — Colocou a mão no peito.
— Desculpe, não foi a minha intenção! — O rapaz se aproximou.
— Eu sei! — Olhou atravessado para o amigo.
— Pensei que você tinha um encontro, Mattia.
— Pois, é! — Coçou a nuca instintivamente enquanto caminhavam. — Ela não era como eu esperava.
— E como sempre, você fugiu.
Lívia balançou a cabeça, não era a primeira vez que o seu amigo fazia aquilo.
— Quer jantar conosco? — ele perguntou, meio sem graça. — A minha mãe disse que preparou fettuccine.
— Não sei — respondeu, pouco convincente. — Não quero ser uma intrusa no meio de sua família. — parou ao lado da porta do veículo vermelho.
O convite do amigo era tentador, mas Lívia se sentia constrangida. Órfã de mãe e sem imaginar o paradeiro de seu pai, ela nunca soube o que era ter a família reunida em torno da mesa.
— Sabe que a mamãe te adora, você é nossa convidada.
— Só vou porque amo fettuccine e estou com muita fome.
— Estou ouvindo seu estômago reclamando…
— Bobo!
Ao chegar à modesta casa, Lívia foi recebida pela mãe de seu amigo, ela era gentil e a tratava com carinho. O jantar já havia sido servido e os dois ainda falavam sobre as melhorias a se fazer na clínica, até serem interrompidos pela senhora de fios brancos.
— Nada de falar de negócios à mesa!
— Sim, mama!
O jantar havia sido tão agradável que quando se deu conta o relógio já marcava nove horas da noite. Lívia olhou pela janela e viu que alguns pingos de chuva começavam a se chocar contra o vidro, era hora de ir. Mattia se ofereceu para levá-la até à porta enquanto Lívia abraçava a mama agradecendo pelo delicioso jantar. Enquanto caminhavam, Mattia tentou convencê-la de que poderia ser perigoso dirigir durante a chuva, mas Lívia não via problema e prometeu avisá-lo por mensagem assim que ela chegasse em casa. Após se despedirem, ela correu pelo gramado em direção ao carro.
Naquela noite chuvosa, as ruas estavam vazias. Enrico seguiu o homem de capa preta por um longo caminho sem ser notado. Queria ter certeza de que não havia testemunhas à sua volta antes de cumprir a sua missão.
Ele cresceu sabendo que os traidores eram raças da pior espécie e que deveriam ser liquidados o quanto antes. Parado num beco mal iluminado, esperava que o contador chegasse mais perto, nesse ramo a paciência é indispensável. Em um movimento súbito, Enrico passou a corda no pescoço do homem que, instintivamente, lutou para sobreviver.
— Seu traidor de merda! — ele impôs toda a sua força apertando a corda cada vez mais, o homem buscava freneticamente pelo ar sem conseguir se desvencilhar de seu algoz — Vou te ensinar a não se meter com a minha família!
Segurando entre o queixo e a cabeça, ele virou o pescoço do traidor para o lado oposto e quebrou-lhe o pescoço. Enrico soltou o corpo do homem sem vida no chão e cuspiu sobre ele, não satisfeito, desferiu chutes contra o corpo estirado no chão. Abaixou-se e vasculhou a capa até encontrar o livro e um pen drive.
— Hei!
Enrico se virou após guardar os objetos recuperados, viu dois homens vindo em sua direção e então tentou fugir, mas um deles venceu a distância e o agarrou pelo braço. Enrico desferiu uma cotovelada no queixo do homem, fazendo-o perder os sentidos.
— Menos um, — mostrou os dentes alinhados num sorriso branco. — Venha! — Ajeitou a luva preta e enxugou a água da chuva que começava a embaçar a sua visão.
O homem comprido tirou uma faca da cintura e correu para cima de Enrico, ele se esquivou do primeiro golpe, mas segundo, acertou o seu braço esquerdo. Segurando a cabeça do seu rival, chocou o rosto dele contra o joelho e o jogou no chão, a faca caiu longe.
Enrico estava pronto para executá-lo, quando foi surpreendido por uma pancada violenta contra a sua cabeça. Sentiu a visão turva e o corpo pesado, mas sabia que se caísse ali seria o seu fim. Reunindo as poucas forças que tinha, ele cambaleou até um muro baixo que havia ali e pulou com dificuldade.
Do outro lado, o cão que guardava a propriedade rosnou ferozmente ao ver o homem invadir o local, Enrico correu o mais rápido que pôde e, em um último esforço, escalou o portão para o outro lado.
Ao pisar na calçada, conseguiu ainda dar alguns passos até que sua visão escureceu por completo e ele tombou inconsciente no chão molhado pela chuva.
Flashes dos momentos de sua infância pareciam bem claros em sua memória. Havia um lindo sorriso no rosto de sua mãe quando ela o acordava pela manhã para ir à escola. Fazia tempo que não sonhava com a imagem terna e bela.
As pálpebras abriram lentamente e se fecharam. Apesar da visão turva, ele vislumbrou a mulher de cabelos molhados, ela tinha uma aparência que recordava a mãe de Enrico.
— Mamãe — Enrico sussurrou.
— Não se mexa, — a médica ordenou enquanto o homem ferido delirava, — vou cuidar de você!
Lívia arrancou a manga de sua camisa branca e enrolou no braço ensanguentado do homem desconhecido antes de arrastá-lo para o carro.
Pelas ruas molhadas, ela estava dirigindo em alta velocidade para socorrer o homem que permanecia inconsciente no banco de trás do veículo. A médica freou bruscamente em frente ao hospital. Seria complicado carregar aquele homem alto e musculoso até uma das salas com materiais de suturas. Pelo inchaço que se formou na cabeça dele, provavelmente, ele teve uma concussão.
Após tirá-lo do carro, ela o arrastou até uma maca com certa dificuldade e conseguiu levá-lo até a sala onde encontraria o material necessário para cuidar daqueles ferimentos. Por um instante, julgou a si mesma por estar sozinha ajudando um homem que nem conhecia.
— O juramento de Hipócrates! — Lembrou-se da sua promessa no dia da cerimônia de formatura. — Cumprir segundo meu poder e minha razão.
Ela respirou profundamente, pegou a tesoura e logo rasgou a manga do blazer para examinar melhor o ferimento no braço ensanguentado.
— Ferimento de facada! — murmurou para si.
Lívia deu início ao procedimento de sutura após a limpeza do ferimento e aplicação de anestesia local. Passou o quinto, e último, fio de seda e então fechou antes de dar o nó. Examinou o inchaço na testa de Enrico, ele murmurou de dor quando ela pressionou os dedos sobre o hematoma. Precisaria fazer uma tomografia e limpar o pequeno corte no supercílio. Toda aquela agitação a fez lembrar da época em que exercia o trabalho braçal, durante a residência no hospital da Francês.